segunda-feira, 27 de março de 2006

as cidades invisíveis - Eutrópia

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Italo Calvino

Nazaré enviou este belíssimo texto de Italo Calvino:

AS CIDADES E AS TROCAS



Ao entrar no território que tem Eutrópia como capital, o viajante não vê uma mas muitas cidades, todas do mesmo ta­manho e não dessemelhantes entre si, espalhadas
por um vasto e ondulado planalto. Eutrópia não é apenas uma dessas cida­des mas todas juntas; somente uma é habitada, as outras são desertas; e isso se dá por turnos. Explico de que maneira. No dia em que os habitantes de Eutrópia se sentem acometidos pelo tédio e ninguém mais suporta o próprio trabalho, os pa­rentes, a casa e a rua, os débitos, as pessoas que devem cum­primentar ou que os cumprimentam, nesse momento todos os cidadãos decidem deslocar-se para a cidade vizinha que está ali à espera, vazia e como se fosse nova, onde cada um esco­lherá um outro trabalho, uma outra mulher, verá outras paisa­gens ao abrir as janelas, passará as noites com outros passa­tempos amizades impropérios. Assim as suas vidas se renovam de mudança em mudança, através de cidades que pela exposi­ção ou pela pendência ou pelos cursos de água ou pelos ven­tos apresentam-se com alguma diferença entre si. Uma vez que a sua sociedade é organizada sem grandes diferenças de rique­za ou de autoridade, as passagens de uma função para a outra ocorrem quase sem atritos; a variedade é assegurada pelas múl­tiplas incumbências, tantas que no espaço de uma vida rara­mente retomam para um trabalho que já lhes pertenceu.
Deste modo a cidade repete uma vida idêntica deslocan­do-se para cima e para baixo em seu tabuleiro vazio. Os habi­tantes voltam a recitar as mesmas cenas com atores diferentes, contam as mesmas anedotas com diferentes combinações de palavras; escancaram as bocas alternadamente com bocejos iguais. Única entre todas as cidades do império, Eutrópia per­manece idêntica a si mesma. Mercúrio, deus dos volúveis, pa­trono da cidade, cumpriu esse ambíguo milagre.


Calvino, I. As cidades invisíveis. Companhia das Letras, 1990 [Le città invisibili, 1972]

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